terça-feira, 19 de junho de 2012

E se...




Eu já compro sabendo que vou me aborrecer, mas não pude resistir à chamada de capa da revista Mundo Estranho: e se... Brasília não tivesse sido construída?

Depois de um abre que repete informações que aprendi na quarta série, a revista traz um compêndio de elucubrações que vão muito além da criatividade usual.

Para quem não acompanha o tema, a criatividade usual reza que, se a capital do Brasil ainda fosse no Rio, haveria muito mais protestos e mobilizações sociais reivindicando o fim da corrupção, dos privilégios e da roubalheira na política do país. Pena que isso não se veja no próprio Rio de Janeiro em relação a Sérgio Cabral Cachoeira Cavendish & cia ltda - e que a política carioca seja uma das mais nojentas do país. É um argumento que não faz o menor sentido, portanto, mas com o qual eu já estou acostumada.

O legal é que aqui ele aparece em uma variação recheada de preconceito: "funcionários públicos viriam mais do Sudeste do que de outros cantos do país, portanto teriam melhores condições de se mobilizar". Claro - pois, como se sabe, não existe no Brasil gente mais engajada politicamente do que os paulistas e cariocas. Talvez gaúchos e pernambucanos tenham alguma coisa a dizer sobre isso.

Mas vamos às novas vantagens de Brasília nunca ter sido construída, segundo a Mundo Estranho:

- O Rio seria pacificado. Juro. "A presença do poder federal no Rio desestimularia o crescimento do crime organizado. A cidade seria menos violenta, com morros desocupados ou dominados pelo Exército".  Peraí, deixa eu entender: a presença do governo estimula ou desestimula o crime organizado? O argumento de base não é que onde há política há fogo?

- Seríamos "mais sudeste" e "menos centro-oeste": aí eu concordei. Seríamos mesmo. Só que, ao contrário da linha da matéria, acho que isso seria uma merda. "A região Sudeste centralizaria ainda mais as atenções, com o centro produtivo e financeiro em São Paulo e o político no Rio". Claro, porque hoje, sem o poder político o Rio é um peso morto - tirando, talvez, que se trata do segundo PIB do país. O mais legal é a consideração com Goiânia que a matéria tem: "Goiânia seria mais modesta" (porque hoje ela é o que? Arrogante?) "e não haveria interesse político em criar o estado de Tocantins". Peraí, então isso é tudo a que se resume o desenvolvimento do centro-oeste brasileiro? E o Mato Grosso? O Mato Grosso do Sul? O Pará? A produção agrícola brasileira? E o acesso à Amazônia? Nossas fronteiras? A marcha para Oeste se resume então aos interesses políticos da criação do estado de Tocantins? 
 
Mas a melhor de todas está por vir:

-  Seríamos "mais verdes", o que sempre pega bem hoje em dia. Agora sente o porquê: "Empreiteiras têm grande influência na política desde a construção de Brasília. Partidos que têm relação próxima com essas empresas, como o PMDB, não teriam tanta força - e, com isso, grupos cariocas como o PV poderiam crescer". Achei uma concatenação lógica aguçada. Até a parte da força do lobby das empreiteiras eu segui o argumento. A parte do PMDB eu achei elogiosa para os outros partidos políticos (menção hornosa ao PV citado nominalmente), mas o melhor foi a relação com fazer crescer grupos cariocas. Só no Rio existem partidos totalmente imunes a lobbies, como a matéria atesta ser o caso do PV? E os grupos políticos moralmente evoluídos dos outros estados, não cresceriam? Aliás... não tem PMDB no Rio?! Gente!, qual o partido do Cabral?!, eita!

Tem outras partes menos engraçadas, tipo ter mais artistas na política ("Tony Ramos para presidente" é o mote) ou o tipo de pressão popular que a Dilma receberia caminhando no calçadão de Copacabana.

Mas o pior é que o teor da matéria não me espanta. Todos (eu disse todos) os editores das revistas pra quem eu frilo me saudaram com um "você chega quando a São Paulo?" quando eu disse que estava voltando de Paris. Tudo o que a gente lê é produzido por uma gente encastelada no ar condicionado de algum prédio de Sampa ou do Rio, que não sabe nada de moringas, maniçobas, jerimuns, piás - gente que não sabe nada do resto do país.

Se isso é o mais perto que uma revista ludo-científica ou "para curiosos" que nós podemos chegar, francamente, estamos arrumados.

15 comentários:

Camila disse...

Eu venho tendo problemas de identificação com a nossa cidade, mas essa reportagem me parece preconceituosa.
Como se fosse um desperdício apoiar o desenvolvimento econômico no centro do país.

Se Brasília não tivesse sido construída, provavelmente os desequilíbrios econômico e de representatividade - cultural, social, midiática - fossem ainda mais fortes.

Anônimo disse...

Bravo!

Renato disse...

Se Brasília não tivesse sido construída... não teria conhecido a Carol e tantas outras pessoas legais que me fizeram uma pessoa melhor.

Amanda disse...

Acho que dá pra inventar o que quiser com especulações... Mas deveriam dar o nome certo para esse tipo de texto: literatura. Jornalismo é que não é.

Ana C. disse...

Então os cariocas sabem que Brasília existe? Curioso! E eles leem? Que interessante! Achei que ler revista fosse coisa de “mané”!

A matéria diz que o PV seria mais forte se Brasília não existisse, mas se não me falha a memória, a Marina Silva ganhou em Brasília na última eleição presidencial. Brasília também já foi governada por Cristovam Buarque, ecologista, discípulo de Ignacy Sachs.

A tese de que a culpa da corrupção, violência, péssima gestão ambiental do Rio e de São Paulo é de Brasília é difícil de ser sustentada!

daniel valentim disse...

Por que "literatura", Amanda? Não entendi isso...

Você quer dizer ficção? Que seria contraponto a jornalismo?

E por essa linha de raciocínio o jornalismo seria o retrato da realidade?

Achei que desde 1921 ninguém mais caía nessa...

Andréa disse...

Deve ser piada.Bem sem graça, evidentemente.

Amanda disse...

Sim, Daniel, ficção. Tem até nome para esse gênero de literatura: ucronia.

Não sei os outros, mas o jornalismo que eu faço é retrato da realidade sim.

daniel valentim disse...

ok, Amanda, cuidado pro mundo não te desmentir

Carol Nogueira disse...

Daniel, a Amanda, que é jornalista também, está tentando fazer a diferença entre a matéria que gente "séria" faz - que ouve especialistas a respeito, cita fontes, procura o melhor personagem ou a melhor pessoa que te ajude a pensar sobre um tema, formar uma opinião crítica e só então escrever sobre algo - disso que está aí, que é elucubração pura e dura. É claro que mesmo este jornalista bem intencionado está sujeito às subjetividades da vida que são inerentes a todos nós - por mais especialistas partidários da não-transferência da capital que eu ouvisse, por exemplo, talvez fosse incapaz de fazer qualquer coisa realmente crítica a isso, simplesmente porque estou muito implicada no tema, nasci aqui, acho que Brasília é alvo de preconceito burro pelo resto do Brasil, etc. Mas enfim, uma coisa são as subjetividades da vida à qual todos nós temos direito, mesmo nós jornalistas, e se você quer saber acho uma pena que aqui no Brasil tenhamos o péssimo hábito de não expor nossas subjetividades, a maior parte dos veículos de comunicação de massa de fato se escondem atrás de uma pseudo-isenção que não existe. Mas daí a criar uma história sozinho, sem fontes, sem a mínima ponderação, sem "o outro lado", vai uma distância. É por isso que a Amanda insiste que isso aí não é jornalismo. É a opinião de alguém. Pura e simplesmente.

daniel valentim disse...

Exatamente...

Qualquer discurso (conto, reportagem, tela, foto) é uma construção sobre um objeto; não é nem o objeto nem seu retrato fiel (exatamente porque o objeto, em si, nos é sempre irrecuperável em sua totalidade). A responsabilidade - no caso do jornalismo - está, além de na busca de fontes as mais "confiáveis" e variadas possíveis, no reconhecimento da insuficiência do discurso - o que na verdade é a constatação de que o discurso se torna insuficiente exatamente no momento em que se deposita nele a esperança de ser a representação do real. Esse jornalismo cria uma meta impossível de se alcançar, por isso o comentário "cuidado pro mundo...": é sempre frustrante descobrir-se insuficiente.

Não quis, em nenhum momento, ofender ninguém. Amanda, me perdoe se esse foi o caso.

daniel valentim disse...

Desconsiderem meus comentários. Eles estão meio babacas, como eu por esses dias.

Anônimo disse...

Adorei o texto.
Exprime o que muitas vezes pensei a respeito da cidade, mais ainda, das críticas que sempre ouvi da cidade. E ficava sem muita reação, sem saber por onde começar o meu contra-ataque àqueles que adoram exprimir "aquela velha opinião formada sobre tudo".
Parabéns!

Laísa Alcântara disse...

Uma outra coisa que esqueci de mencionar: seu texto daria um BELO e-mail no 'Fale Conosco' da revista, sobre críticas e sugestões... :)

Pânico no Trânsito disse...

Concordo que paulistas e cariocas pensam que o Brasil é só lá. Não sabem absolutamente nada de Brasília, mas cabe aqui deixar claro, que quem mora em Brasília não sabe nada do resto do Brasil e se sente vivendo em uma ilha.

Agora, achar que haveria menos corrupção se a capital fosse no Rio é uma pessima piada. A corrupção, roubalheira, casquinha, malçandragem ou como queiram chamar é idolatrada na cidade quase maravilhosa.