Eu já
compro sabendo que vou me aborrecer, mas não pude resistir à chamada de capa da
revista Mundo Estranho: e se... Brasília não tivesse sido construída?
Depois de
um abre que repete informações que aprendi na quarta série, a revista traz um
compêndio de elucubrações que vão muito além da criatividade usual.
Para quem
não acompanha o tema, a criatividade usual reza que, se a capital do Brasil
ainda fosse no Rio, haveria muito mais protestos e mobilizações sociais
reivindicando o fim da corrupção, dos privilégios e da roubalheira na política
do país. Pena que isso não se veja no próprio Rio de Janeiro em relação a
Sérgio Cabral Cachoeira Cavendish & cia ltda - e que a política carioca
seja uma das mais nojentas do país. É um argumento que não faz o menor sentido,
portanto, mas com o qual eu já estou acostumada.
O legal é
que aqui ele aparece em uma variação recheada de preconceito: "funcionários
públicos viriam mais do Sudeste do que de outros cantos do país, portanto
teriam melhores condições de se mobilizar". Claro - pois, como se sabe,
não existe no Brasil gente mais engajada politicamente do que os paulistas e
cariocas. Talvez gaúchos e pernambucanos tenham alguma coisa a dizer sobre
isso.
Mas vamos
às novas vantagens de Brasília nunca ter sido construída, segundo a Mundo
Estranho:
- O Rio
seria pacificado. Juro. "A presença do poder federal no Rio desestimularia
o crescimento do crime organizado. A cidade seria menos violenta, com morros
desocupados ou dominados pelo Exército". Peraí, deixa eu entender: a presença do governo estimula ou
desestimula o crime organizado? O argumento de base não é que onde há política
há fogo?
- Seríamos
"mais sudeste" e "menos centro-oeste": aí eu concordei.
Seríamos mesmo. Só que, ao contrário da linha da matéria, acho que isso seria
uma merda. "A região Sudeste centralizaria ainda mais as atenções, com o
centro produtivo e financeiro em São Paulo e o político no Rio". Claro, porque
hoje, sem o poder político o Rio é um peso morto - tirando, talvez, que se
trata do segundo PIB do país. O mais legal é a consideração com Goiânia que a
matéria tem: "Goiânia seria mais modesta" (porque hoje ela é o que?
Arrogante?) "e não haveria interesse político em criar o estado de
Tocantins". Peraí, então isso é tudo a que se resume o desenvolvimento do
centro-oeste brasileiro? E o Mato Grosso? O Mato Grosso do Sul? O Pará? A
produção agrícola brasileira? E o acesso à Amazônia? Nossas fronteiras? A
marcha para Oeste se resume então aos interesses políticos da criação do estado
de Tocantins?
Mas a
melhor de todas está por vir:
- Seríamos "mais verdes", o que
sempre pega bem hoje em dia. Agora sente o porquê: "Empreiteiras têm
grande influência na política desde a construção de Brasília. Partidos que têm
relação próxima com essas empresas, como o PMDB, não teriam tanta força - e,
com isso, grupos cariocas como o PV poderiam crescer". Achei uma
concatenação lógica aguçada. Até a parte da força do lobby das empreiteiras eu
segui o argumento. A parte do PMDB eu achei elogiosa para os outros partidos
políticos (menção hornosa ao PV citado nominalmente), mas o melhor foi a
relação com fazer crescer grupos cariocas. Só no Rio existem partidos totalmente imunes a lobbies, como a matéria atesta ser o caso do PV? E os grupos políticos moralmente evoluídos dos outros estados, não cresceriam? Aliás... não tem PMDB no Rio?!
Gente!, qual o partido do Cabral?!, eita!
Tem outras
partes menos engraçadas, tipo ter mais artistas na política ("Tony Ramos
para presidente" é o mote) ou o tipo de pressão popular que a Dilma
receberia caminhando no calçadão de Copacabana.
Mas o pior
é que o teor da matéria não me espanta. Todos (eu disse todos) os editores das
revistas pra quem eu frilo me saudaram com um "você chega quando a São
Paulo?" quando eu disse que estava voltando de Paris. Tudo o que a gente
lê é produzido por uma gente encastelada no ar condicionado de algum prédio de
Sampa ou do Rio, que não sabe nada de moringas, maniçobas, jerimuns, piás - gente
que não sabe nada do resto do país.
Se isso é o
mais perto que uma revista ludo-científica ou "para curiosos" que nós
podemos chegar, francamente, estamos arrumados.
15 comentários:
Eu venho tendo problemas de identificação com a nossa cidade, mas essa reportagem me parece preconceituosa.
Como se fosse um desperdício apoiar o desenvolvimento econômico no centro do país.
Se Brasília não tivesse sido construída, provavelmente os desequilíbrios econômico e de representatividade - cultural, social, midiática - fossem ainda mais fortes.
Bravo!
Se Brasília não tivesse sido construída... não teria conhecido a Carol e tantas outras pessoas legais que me fizeram uma pessoa melhor.
Acho que dá pra inventar o que quiser com especulações... Mas deveriam dar o nome certo para esse tipo de texto: literatura. Jornalismo é que não é.
Então os cariocas sabem que Brasília existe? Curioso! E eles leem? Que interessante! Achei que ler revista fosse coisa de “mané”!
A matéria diz que o PV seria mais forte se Brasília não existisse, mas se não me falha a memória, a Marina Silva ganhou em Brasília na última eleição presidencial. Brasília também já foi governada por Cristovam Buarque, ecologista, discípulo de Ignacy Sachs.
A tese de que a culpa da corrupção, violência, péssima gestão ambiental do Rio e de São Paulo é de Brasília é difícil de ser sustentada!
Por que "literatura", Amanda? Não entendi isso...
Você quer dizer ficção? Que seria contraponto a jornalismo?
E por essa linha de raciocínio o jornalismo seria o retrato da realidade?
Achei que desde 1921 ninguém mais caía nessa...
Deve ser piada.Bem sem graça, evidentemente.
Sim, Daniel, ficção. Tem até nome para esse gênero de literatura: ucronia.
Não sei os outros, mas o jornalismo que eu faço é retrato da realidade sim.
ok, Amanda, cuidado pro mundo não te desmentir
Daniel, a Amanda, que é jornalista também, está tentando fazer a diferença entre a matéria que gente "séria" faz - que ouve especialistas a respeito, cita fontes, procura o melhor personagem ou a melhor pessoa que te ajude a pensar sobre um tema, formar uma opinião crítica e só então escrever sobre algo - disso que está aí, que é elucubração pura e dura. É claro que mesmo este jornalista bem intencionado está sujeito às subjetividades da vida que são inerentes a todos nós - por mais especialistas partidários da não-transferência da capital que eu ouvisse, por exemplo, talvez fosse incapaz de fazer qualquer coisa realmente crítica a isso, simplesmente porque estou muito implicada no tema, nasci aqui, acho que Brasília é alvo de preconceito burro pelo resto do Brasil, etc. Mas enfim, uma coisa são as subjetividades da vida à qual todos nós temos direito, mesmo nós jornalistas, e se você quer saber acho uma pena que aqui no Brasil tenhamos o péssimo hábito de não expor nossas subjetividades, a maior parte dos veículos de comunicação de massa de fato se escondem atrás de uma pseudo-isenção que não existe. Mas daí a criar uma história sozinho, sem fontes, sem a mínima ponderação, sem "o outro lado", vai uma distância. É por isso que a Amanda insiste que isso aí não é jornalismo. É a opinião de alguém. Pura e simplesmente.
Exatamente...
Qualquer discurso (conto, reportagem, tela, foto) é uma construção sobre um objeto; não é nem o objeto nem seu retrato fiel (exatamente porque o objeto, em si, nos é sempre irrecuperável em sua totalidade). A responsabilidade - no caso do jornalismo - está, além de na busca de fontes as mais "confiáveis" e variadas possíveis, no reconhecimento da insuficiência do discurso - o que na verdade é a constatação de que o discurso se torna insuficiente exatamente no momento em que se deposita nele a esperança de ser a representação do real. Esse jornalismo cria uma meta impossível de se alcançar, por isso o comentário "cuidado pro mundo...": é sempre frustrante descobrir-se insuficiente.
Não quis, em nenhum momento, ofender ninguém. Amanda, me perdoe se esse foi o caso.
Desconsiderem meus comentários. Eles estão meio babacas, como eu por esses dias.
Adorei o texto.
Exprime o que muitas vezes pensei a respeito da cidade, mais ainda, das críticas que sempre ouvi da cidade. E ficava sem muita reação, sem saber por onde começar o meu contra-ataque àqueles que adoram exprimir "aquela velha opinião formada sobre tudo".
Parabéns!
Uma outra coisa que esqueci de mencionar: seu texto daria um BELO e-mail no 'Fale Conosco' da revista, sobre críticas e sugestões... :)
Concordo que paulistas e cariocas pensam que o Brasil é só lá. Não sabem absolutamente nada de Brasília, mas cabe aqui deixar claro, que quem mora em Brasília não sabe nada do resto do Brasil e se sente vivendo em uma ilha.
Agora, achar que haveria menos corrupção se a capital fosse no Rio é uma pessima piada. A corrupção, roubalheira, casquinha, malçandragem ou como queiram chamar é idolatrada na cidade quase maravilhosa.
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